sábado, 7 de junho de 2014

Mitolatria






1.
Narcisismo louco esse:
o de amar o que se é
sem ser, senão pro outro,
sem ser, senão pelo outro,
sem ser…

Nem sei se chamo narcisismo,
esse amor pelo que se é
que se apressa em defender,
com veemência, com violência,
obsessivamente,
como própria, a imagem
de outro, como suas
as feições alheias.

Será narcisismo
essa vaidade de
ser espelho e refletir?

Amar-se como único,
sendo apenas mais um,
Amar-se como um raro
dentre tantos outros
mas não sendo senão
como os tantos outros.

Eu só vejo lagos. Lagos
espelhando o narciso fictício
que a mídia emula
cotidianamente.

Seja você mesmo!
Feito pra você!
- dizem os agentes
da massificação.

Eles sabem quem é você?
Sabem e bem mais
do que você!


2.
Amar-se tanto e tão estupidamente
a ponto de querer em cada coisa
ao menos um traço que permita dizer:
é meu!
Estou aí!

Vê essa camisa?
É a minha cara!
Vê esse isqueiro?
É a minha cara!

Que cara é essa
de que se orgulham?
Ela existe?
Ela é só estampa?

Tudo tem a cara de todos,
produzem milhões e milhões
de camisas e isqueiros e sandálias
e todo o tipo de bregueço
e quem compra e usa,
sente-se único e especial,
abençoado pelos
deuses do comércio.

Ninguém sabe o que
é pesquisa de Mercado?

Eu só vejo lagos! Lagos
cuja maior satisfação
de seu hedonismo lunático
está em ser espelho,
em espelhar.


3.
E não é fingimento,
parece que é, mas não é,
você olha na cara deles
e pensa que é, que só podem
estar de brincadeira, mas não.
É sério.

Antes fosse fingimento,
antes fosse o mais
descarado e cínico
fingimento,

Porque ao fingimento
acompanha a constante
possibilidade do desmascaramento
e a todo fingidor desassossega
tal possibilidade.

Antes fosse, mas não é.
Não é fingimento,
são certezas idiotas
retiradas de slogans
e frases de filmes e séries,
são duras convicções
enfiadas cabeça à dentro.


4.
Não mataram a esfinge,
eles cantam vitória, em grande coro,
mas não mataram o monstro.

A esfinge está viva, mas noutra parte,
levaram-na, inteira e ainda viva,
com seus dentes e garras
e suas questões e perigos,
para bem longe,
para bem depois dos muros.

E lá, ela ainda guarda na garganta
o grande desafio e sempre está a espreita
para lançá-lo:
Decifra-me ou te devoro.

Quem é doido de ir buscá-la?
Não sei, mas, certamente,
vão chamá-lo doido
e vão mantê-lo em descrédito
e chamar loucura,
de coisa de doido
tudo o que disser…

E vão rir dele,
estúpidos que são,
em vídeos no youtube
e montagens pela internet
que compartilharão entre os contatos.


5.
São tempos estranhos esses
em que se pode personalizar tudo,
de carros a fogões, de celulares
a personagens de vídeo game,

Mas não as pessoas,
que são iguais, e de tudo fazem
para serem tal como são
(posto que se amam,
nem tanto umas às outras,
mas a si mesmas)
todas iguais, mas portando,
bugiganga tecnológica diferente.

Tempos estranhos!
Em que qualquer produto
deve ser editável para adaptar-se
à personalidade do dono,
não a qualquer uma,
que ele tenha, mas àquela
que as propagandas dizem sua,

tempo quando tudo
(mas não todos)
tem rosto.

E todos têm tanta certeza
do que são e se envaidecem disso,
mas de que se envaidecem
mais que da imagem
que as campanhas publicitárias
mandam carregar,
que assumem como as suas?


6.
Um dia desses vi o anúncio
de um fogão completamente
editável, mais de mil cores
e combinações disponíveis…

Preciso dizer que ri?
Ri, ri muito ao imaginar
a dona de casa comum
exercitando com euforia
o seu egolatrismo imbecil
na configuração do utensílio
doméstico.

“Eu quero assim,
tem assim – cons negocinho pra cá
e esses trocinhos que nem
na caixa? Tem?
Eu vou levar!”

Ri, porque isso é tratar o fogão
como uma extensão de si,
como uma forma de realizar
o ser que o ser de outro modo
não se sabe realizar.

E há quem me mande
levar o mundo a sério…


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