sexta-feira, 18 de julho de 2014

Era Carteira Assinada






Janderson terminou o banho e ainda no banheiro, sentia a pele arder. Era sempre difícil se vestir naquele calor de Porto Velho, pôr calça e camisa, depois, meia e tênis, era como vestir uma armadura quente, logo dava aquela angústia, depois, aquela sensação de não estar limpo. Não precisou pentear o cabelo cortado na máquina 1, escovou os dentes e foi pra parada de ônibus. A poeira e o sol ajudaram a piorar aquela sensação terrível, aquela ardência nos peitos, o meio das coxas e o suvaco já úmidos e preguentos de suor.

Saiu de casa ao meio dia. A entrevista seria só às duas da tarde, mas, ele sabia, saísse um pouco depois e era atraso na certa. Não queria fazer nada errado, aquela era uma oportunidade única, a primeira em muito tempo. Conseguisse o emprego e não precisaria mais depender das vicissitudes dos bicos que fazia. Fazia de tudo, de descarregar carretas a capinar quintais, de esvaziar fossas a ajudar na organização de festas. Não tinha jeito, ganhava pouco, sempre faltava dinheiro em casa. Tinha o aluguel e a conta de energia pra piorar tudo. Janderson morava com a mãe e duas irmãs pequenas, a mãe trabalhava como diarista e também contava com recebimentos muito irregulares. Aquele emprego, mudaria as coisas.

Depois de trinta minutos, ao sol, aspirando a poeira grossa e morna do bairro e sentindo falta de um vento qualquer, Janderson subiu no ônibus, entregou algumas moedas para o cobrador e foi se entalar entre os muitos que por ali já estavam. Quarenta minutos depois, estava descendo do ônibus. Andou ainda umas quadras e encontrou o restaurante onde iria ser entrevistado. Um vizinho tinha feito a indicação, Janderson agradeceu e não teve dúvidas, era carteira assinada e tudo mais.

Chegou no restaurante, que não era lá grande coisa, tinha na parede um verde desbotado, um cheiro forte de gordura engrossando o ar, mobília de madeira, um ou outro cliente almoçava, pingando suor. Ia dar duas horas, perguntou pelo seu Antônio. O cara do balcão perguntou: o que quer com ele? Trabalho - disse Janderson, meio sem jeito. Ele ainda não chegou, senta ali e espera, acho que ele vem hoje aqui - disse sem simpatia o cara do balcão. Antônio chegou pelas quatro da tarde. Durante o tempo que passou, Janderson não pensava em mais nada, a não ser em ir embora dali, não estava tudo combinado? Que porra era aquela de “talvez ele venha hoje aqui”. E se não viesse?

Antônio era um nojento, dava pra ver. Estava bem vestido, mas a roupa não podia disfarçar a cara de grande filho da puta. Chegou, falou com o cara do balcão, entrou numa porta e ficou mais uma meia hora por lá. Janderson pensou, era mesmo uma sacanagem, mas o que podia fazer? Era ele quem estava em desvantagem, só podia esperar. Antônio saiu, foi ao balcão, chamou o jovem com um sinal de mão um tanto desdenhoso. Apertou-lhe a mão sem vontade e perguntou: foi o Zé que te mandou aqui? Foi, respondeu Janderson. É meu camarada, tu tá mesmo precisando dum emprego, dá pra ver, olha isso que está vestindo, que roupa é essa? E esse cabelo? A polícia te pegou por aí? Janderson não riu. Não sei, não, se vai dar pra te arranjar alguma coisa por aqui, será que tu não vai me roubar nada? Antônio falou isso e cutucou o cara do balcão, ambos riram. Janderson não.

Eu quero trabalhar. Quisesse roubar não tava aqui… disse Janderson com muita certeza e determinação, parando bem antes do “seu filho da puta” que ficou na garganta, bem perto de sair. Antônio olhou pro jovem: Tu é arrogante, né? Cheio de marra, aí. Não acha que é muita marra pra um passafome? Janderson respirou fundo. Sabia que podia dar conta dos dois ali mesmo, era só começar. Mas não podia, precisava do emprego, da renda. Pensou na mãe, nas irmãs e no quanto era difícil às vezes não ter dinheiro nem pra mistura. Quando tinha, era salsicha ou ovo. Fígado e carne moída só nos dias fartura. Não tinha jeito, tinha que conseguir o trabalho.

Antônio, coçou o queixo e disse: o Zé tá comendo a tua mãe? Acho que tá, hein?, se não, porque ia tá forçando a amizade comigo pra arranjar um emprego prum moleque vagabundo? Janderson sentiu vontade de quebrar tudo ali, começando pela cara daquele veado desgraçado, tinha bons braços, tinha raiva, tinha tudo, mas não quebrou nada. Olhou pra Antônio e tentando falar, apenas balbuciou, cheio de fúria, quase sem abrir a boca: enfia esse emprego no cu. E saiu desejando todo o mal do mundo praquele desgraçado, filho de uma arrombada, planejando voltar de noite e incendiar aquela porra de restaurante meia boca. Foi até o Mercado Cultural, onde já tinha ido pra algumas festas de rock sem um real no bolso, correu pro banheiro fedorento, entrou numa das cabines e começou a chorar. Tinha dezenove anos e se sentia de novo o menino abandonado pelo pai, sem poder fazer nada, se sentido um fraco, um merda, um nada, pensando que ia mesmo morrer de fome, ele e a família.

Quinze minutos depois, o seu ódio se converteu numa determinação sem precedentes, isso não ia ficar assim, ele não seria esmagado, não seria sempre um nada, ele conseguiria. Aqueles pilantras e todos os da sua laia iam ver. Enxugou as lágrimas e foi pra casa. Seriam tempos realmente difíceis.

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