terça-feira, 29 de julho de 2014

Manhã de Sexta


1.
Às vezes, levo a sério esse negócio
de que sou um poeta muito insensível,
aí, penso em escrever alguns versos
bastante ternos e cândidos
com passarinhos e céus azuis,

Mas é difícil.

Os últimos passarinhos
que vi, espantei. Joguei uma
sandália e eles saíram voando.

Às 7 da manhã qualquer gorjeio
é barulho.

O céu estava azul, realmente azul,
eu estava com sono, nem aí pra
céu nenhum.


2.
O ônibus de hoje atrasou e quando
vi o pessoal se acumulando na parada,
não tive dúvidas:

De nada adiantariam todos
aqueles passos a mais de todas as manhãs
para pegar a condução nos pontos iniciais:
viria lotado, entupido de gente.

Veio.
E quase já não cabia ninguém.
Um pouco mais, e já não cabia.

Mesmo assim, o motorista parava,
o pessoal reclamava:
Não cabe mais, motora,
dá linha.

Tá doido, motorista?
Num somos bois não!

Logo hoje, pensei, que eu
ia escrever uns versos de ternura...


3.
Uma amiga está me falando sobre Brotowski,
ouvi assim, e até ri. Depois pesquisei no
Google e descobri que era com G e não B.

Grotowski.
Em busca de um teatro pobre,
ela recomendou,
fiquei com vontade de ler.

A questão do existencialismo é muito
mais presente no teatro, ela diz,
o ator tem que se despir de si
e vestir a personagem...

Eu tinha falado de uma apresentação
que fiz na véspera, onde falei um pouco
de Batman e Superman, ela não riu,
prestou atenção. Sabia do que
eu estava falando.

Teo estava feliz, o prefeito disse
numa entrevista que vai chamar
todos os que passaram no concurso
de 2012. Ela estava no meio.


4.
O ônibus seguia com a porta traseira aberta
e duas ou três pessoas corriam o risco de
cair, o resto, corria o risco de não respirar
ou de jamais se despregarem umas
das outras,
tão apertadas estavam.

Tem um cara atrás de mim,
ele estava tão perto que,
mais um pouco,
e teríamos que casar.

Encaro, ele fica todo errado,
mas não pode fazer nada.
Ônibus não é lugar pra gente
com dificuldades com contato corporal
ou algum tipo intenso de pudor.

E ainda tinha o calor,
calor de Porto Velho.

Fecha a porta motora, alguém gritou.
Não para mais, motora...

O lado bom que tinha:
podia estar pior 
e não estava.

Alguém podia ter comido ovo demais
no café da manhã, ou esquecido
de lavar bem o suvaco.
Aí, sim, ia ser foda.


5.
O cobrador bate uma moeda
contra um daqueles tubos do ônibus,
tim tim tim:

Tá cheio, Reginaldo.

Um passageiro brinca:
Para com isso, Reginaldo.
O riso acontece.

Um sujeito ao meu lado,
ponderado, especula sobre
o fato:
Não há uma sintonia
entre o cobrador e o motorista,
por isso, o motorista não sabe
que não deve mais parar.

Estou numa posição ruim,
minha perna começa a doer,
tento afastá-la um pouco,
não dá.


6.

Penso no meu trabalho,
cadeira almofadada
e ar condicionado.

Penso em Bukowski trabalhando
pros Correios dos Estados Unidos,
tentando dar conta de um trabalho
formulado para robôs.
(Acabei de ler Cartas na Rua.)

Tudo a ver com o que aprendi na
faculdade: o trabalho pode matar,
Yves Clot e Dejours.

Penso se alguém pesquisa
o efeito do ônibus sobre os trabalhadores,
o desgosto, a náusea, a relação
com o absenteísmo.

Penso na minha moto, de moto
eu até vou feliz pro trabalho,
daqui a pouco ela está pronta,
e o ônibus não será mais
problema meu.

Penso nisso: no ônibus como problema meu,
como fazer para mudar? Ser ponderado
não resolve nada, ser revoltado também
não, ainda mais por causa
de raiva momentânea.

Penso nas pessoas xingando o
prefeito, o governador, a presidente,
a seleção brasileira, vergonha da copa,
e penso se algum deputado federal
é mesmo viciado em cocaína
como alguém acabou de dizer.

Penso no motorista,
só mais um cara garantindo
o leite das crianças.

Penso que não sei
como é que virei poeta,
até sei, não sei direito
como é que me mantenho poeta.


7.
Minha amiga falou: Ainda bem
que só vou descer lá na Sete, posso esperar.

O pessoal estava se acotovelando para descer,
minha parada era a terceira seguinte.
Já fui logo me metendo entre
a gente, pra não passar do ponto.
Tchau, eu disse, e ela: tchau.

Desci e estava convicto:
não era um bom dia
para escrever ternuras.

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