sábado, 6 de setembro de 2014

De Quando Cai da Nuvem




Eu já estava na casa dos 20 e ainda não tinha tantos fundamentos para as minhas idiossincrasias como tenho hoje, então, era só um jovem desajustado, pobre e doido, passando duras dificuldades junto com a família ao mesmo tempo que me ocupava em ser nada mais que um grande vagal sonhando em ficar rico fácil escrevendo o melhor livro de todos os tempos, a despeito da lógica do mundo, da gente nele e tudo o mais, a despeito da própria lógica. É como diz o Raul Seixas, quem não tem presente se contenta com futuro.

Sem saber muito a respeito do funcionamento do mundo, senão a partir da minha insanidade juvenil, levado a intensas fantasiações pelas grandes privações por que passava, eu não trabalhava, nem estudava, tudo o que fazia era ler os grandes clássicos da literatura e da filosofia e escrever coisas que, depois de um tempo, nem eu mesmo conseguia decifrar, lia e escrevia compulsivamente. Acreditava do fundo do meu coração maltratado e do meu estômago vazio que escreveria o melhor romance de todos os tempos e pronto, estaríamos a salvo, a mim e minha família.

Ao pensar no assunto, hoje, percebo que não tinha mais onde me segurar, a não ser naquela ilusão e cada vez mais o desespero cotidiano me tangia à ela. Era por acreditar em sua realidade que me dedicava, que conseguia ver que a vida podia valer a pena. Mas um dia ela também se foi, foi quebrada como todo o resto e, talvez porque meu cérebro terminou de se formar, talvez porque naquele dia fui realmente franco comigo mesmo, me dei conta de que se não fizesse algo, nada seria feito. Parece coisa muito óbvia, mas quando você está agarrado numa ideia que se sobrepõe a tudo mais, só é óbvio o que tem a ver com ela.

Um dia me dei conta de que nunca escreveria livro nenhum, nunca terminaria os mais de 20 que já tinha começado, nunca publicaria, nunca faria sucesso, nunca seria um multimilionário apresentando meu novo iate pros meus amigos ricaços e superficiais. Ninguém gostava do que eu escrevia, ninguém entendia, ninguém ligava, e esse monte de nunca e ninguém, acabaram vencendo. Como foi triste perceber tudo isso, que eu era só mais um, que tinha que trabalhar e levar a vida.

Aposto que nada disso teria acontecido, teria me tirado do futuro miserável que se desenhava, caso não tivesse feito o vestibular da Unir, fiz para Direito e por quê? Simplesmente, porque era difícil. Antigamente, eu era muito mais presunçoso que hoje. O problema das grandes ilusões é que você joga segundo as próprias regras e essas regras são formuladas por sua cabeça perturbada para nada mais que afundar você ainda mais na fantasia. Fazendo o vestibular duas vezes, eu comecei a jogar com as regras do mundo e, como não passei, e por sorte, em vez de ficar ressentido, admiti minha incapacidade e que naquelas condições de estudo eu não iria passar em nada.

Foi dureza, de repente, eu não podia mais alimentar a ideia de que era um gênio e tinha que lidar com a ideia contrária, não era um gênio. De repente, me dei conta de que era só mais um jovem estúpido fazendo merda. Fiquei um tempo muito triste. Então, ri de mim mesmo, e embora muito descontente com tudo o que agora sabia que não podia fazer, resolvi fazer o que podia. Pensei, vou mudar minha vida e dos meus familiares. Era o que estava ao meu alcance, dentro das possibilidades que eu tinha no momento. Parei de escrever. Não ia ficar rico mesmo. Agora estava preocupado em não passar o resto da vida lascado.

Queria poder dizer que um tempo depois os meus manuscritos foram descobertos por uma grande editora e, de uma hora pra outra, fiquei multimilionário como sonhei ficar por muito tempo e agora estou aqui, passando na cara de vocês meu sucesso, dinheiro e fama mundial. Mas não é a verdade, a verdade é que uma hora fiz as pazes com a escrita e passei a escrever como andava de cross, por divertimento, ou como quando brincava com meus carrinhos na infância, escrevia para me divertir, pra não me entregar de vez à minha própria mediocridade.

No mais, agora eu era um cara diferente e estava usando a inteligência pra entender o mundo, a gente nele, e não simplesmente para distorcê-lo violentamente segundo os meus anseios, criando uma fantasia para suportar a vida. Não, não estou suportando a vida, estou dando um jeito de ela ser menos dura, trabalho, estudo, bebo muito menos. E a escrita que antes eu amava por ser meu passaporte pra Dubai, agora amo por ser um dos meus modos de autorrealização e se não me dá dinheiro, permite que eu me expresse como sempre quis expressar, e isso é algo que vale a pena.

Poderia passar a semana falando sobre o tema, tão presentes os eventos passados agora se postam diante de mim e o meu jovem eu, que agora mesmo cumprimento e agradeço, vem me dizer que se não fosse a sua demência nada mais me lançaria tão longe no caminho que escolhi pra mim. Mas vou ficar por aqui, não sem antes, falar mais duas coisinhas:

Primeiro: Eu tive muita sorte, na vida de fato, mas agora estou falando só da minha vida mental, e penso assim porque quando me deparei com minhas incapacidades, os curtos limites das minhas possibilidades, veio junto o entendimento existencialista de que aquilo era uma condição mutável, eu poderia mudar, ser melhor, ir além. Valeu Nietzsche, Sarte e outros. Não ia ser fácil, mas era possível. Também tive sorte por estar envolvido demais com minha grandiosa ilusão para acumular ideias prontas sobre tudo, então, se por um lado estava desamparo, sem saber como era, por outro, tinha a oportunidade de aprender e de desafiar o mundo pronto com meu mundo por fazer.

Segundo: Se você está, como estive, apegado a uma ilusão, certamente, vai me contradizer argumentando que não sei de nada, quem sabe é você, vai dizer que não tenho como saber e por aí vai, pois eu digo: vá lidar com o mundo, desafiar essa sua fantasia, aposto que vai quebrar a cara e que vai doer como nada mais. E quando acontecer, lembre desse texto, junte os cacos, consiga um tubo de cola e siga em frente, ninguém mais vai fazer isso por você. Ah, e não esqueça que eu avisei.

Nenhum comentário:

Postar um comentário