quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Todo Morto Vira Santo




1.
Hermínio tinha 53 anos, estava acima do peso e, para seu azar, entre todas as coisas saudáveis que detestava, como esportes, uma alimentação decente, sobriedade e essa besteirada toda, detestava médicos, hospitais, postos de saúde, remédios, cirurgias.

Já tinha sofrido um infarto (não foi exatamente um infarto, ele dizia, foi só um susto), os médicos disseram que foi o estresse associado ao sedentarismo e a frequência muito alta em churrascos e distribuidoras de bebida. Ele devia parar de beber, controlar a comida e tomar o remédio direito, mas não estava nem aí.

Era forte como um touro, pensava, e esse negócio de “o coração estar nas últimas” com certeza era conversa de médico para causar preocupação à toa. Hermínio não era mais uma criança, não seria obrigado a fazer o que não queria por causa de medinhos. Estava bem, ponto, aquilo tinha sido gases, nada mais.

Funcionário do Estado, daqueles que já contavam os anos para a aposentadoria, trabalhava até uma e meia e o resto do dia, completava com cerveja, sofá e a programação da TV a cabo. Nas tardes de segunda à sexta, não fazia outra coisa, a não ser ficar sentado na sala, bebendo e reclamando dos filmes ruins que estavam passando, das mentiras dos jornais, dos programas esportivos e de ter que pagar um absurdo por aquilo.

No fim de semana, acordava tarde e antes de almoçar, se não tivesse cerveja em casa, corria para um bar ali das redondezas e ficava até o anoitecer, ou até a mulher mandar alguém o chamar, com alguma demanda urgente, como trocar uma lâmpada ou a botija de gás. Quando não, ficava em casa mesmo, botava umas músicas do seu tempo para tocar, Creedence, Raul Seixas, Renato e Seus Blue Caps, Roberto Carlos, e esperava a segunda para ir trabalhar. A mulher não gostava do som naquela altura toda, então, ele levava pro quintal ou pro alpendre da casa.

Tereza reclamava. Falava que ele precisava se cuidar mais, perguntava se era só aquilo mesmo que ele queria fazer com o resto de vida que tinha. Ele pensava consigo, mulher só serve pra isso, reclamar e respondia: sim, era o que queria fazer com o resto dos dias que tinha. Já tinha criado os filhos, sustentava a casa, pagava os impostos, pra que mais?

Os dois filhos, já homens feitos e pais de família, de vez em quando, se desvencilhavam de suas rotinas cotidianas e iam visitar os pais. Hermínio gostava do neto que tinha, um só, um menino atentado e boca suja que, ninguém sabia direito o motivo, era o orgulho do avô.


2.
Tereza chegou às 6 e 30, horário rotineiro, trabalhava até as 5 e 30, pegava o carro, enfrentava o trânsito de Porto Velho (que ultimamente estava insano) e chegava em casa para cozinhar, bater boca com o marido antes de conseguir ver novela na TV, dormir com aquele porco ao lado fedendo a suor e cerveja, e recomeçar, no dia seguinte.

Era quarta-feira. Abriu o portão, manobrou o carro, entrou em casa. O marido estava deitado no chão, com a cara estúpida e o bucho inchado para cima. “Com certeza, bêbado, o safado”, ela pensou. Passou direto pro banheiro, foi tomar um banho, tentar lavar do corpo e da mente o peso daquele dia horrível no trabalho.

Asseada, foi à cozinha fazer um arroz, um pouco de salada e fritar um bife. Era um saco ter que cozinhar pro marido, ele não sabia nem ferver água, imagine fazer uma refeição. Daquele tamanho e não podia passar dois dias em casa sozinho que, sem dúvidas morreria de fome. Tereza botava o arroz no fogo e pensava em como ia dar a notícia pra ele, não tinha mais jeito, queria ser livre, o divórcio seria um recomeço. Ela não era muito nova, sabia, tinha 45 anos, muito bem disfarçados pela academia e o uso ostensivo de comésticos, mas não queria mais aquela vida.

Tinha colocado silicone há um ano e meio, pagou com algumas economias e o resto, financiou. E pra quê? O marido só sabia dizer que aquilo era dinheiro no lixo. Mas Tereza, que sempre teve seios pequenos, queria que os novos fossem utilizados por alguém, desejava entregá-los para a satisfação erótica de alguém que a olhasse como um lobo deve olhar a presa momentos antes do ataque. Isso era errado? Queria sentir pelo menos mais uma vez, antes de morrer, o que era ser desejada, amada, procurada, o que não ia acontecer do lado daquele porco preguiçoso, gigante e peludo.

Às vezes, ela pensava em pular a cerca, está na moda, afinal, todo mundo é infiel, e os meninos novinhos do trabalho, todos braçudos, cabeças de vento e com seus lindos rostos risonhos e abobalhados, viviam elogiando as suas pernas, a sua boca, os peitões turbinados. Ela gostava disso, se envaidecia toda, mas queria mais, queria dar umas lições pra aqueles jovens transbordando vida.

Mas, no fundo, ela sabia que não podia fazer assim, não era do feitio dela. Tereza tinha sido educada numa época quando o casamento era sagrado e ficava abismada vendo as menininhas futricando com um e outro por aí e achava sacanagem pura aquilo de liberação sexual feminina, pretexto pra fornicar. Não era pra ela, por isso, primeiro ia se separar.

Daquela noite não passaria, eles conversariam, gritariam, teria a última discussão, o quebra quebra de despedida, ela juntaria as coisas do marido e o poria na rua e daquela vez, não deixaria ele voltar, de jeito nenhum. Talvez, não fosse assim, e eles conseguissem chegar a um acordo, ele saía de casa, levava o sofá e a TV e pronto, estariam livres para viver a vida que queriam.


3.
Deu a hora da novela. Tereza colocou a sua comida no prato, foi para a sala, sentou-se no sofá, gritou: vai passar a noite toda aí? E deu um chutinho na perna do marido. Ele nem se mexeu. Menos mal, ela pensou, pelo menos não teria a briga de sempre pra mudar de canal.

Ligou a TV, mudou o canal, a novela tinha começado. Comeu tranquilamente, acompanhando o enredo pobre da novela. Ela sabia de cor, mocinho e mocinha, juntos no final, vilão ou vilã, mortos ou presos ou pobres pra sempre, mas pelo menos, era confortável ver a repetição daqueles enredos.

Repetição, ela pensava, mudavam um tanto as coisas, incluíam questões sociais, preconceito, discriminação e tudo mais, e ultimamente tinham causado aquela polêmica com o beijo gay, mas Tereza sabia - tudo igual. Mas tinha algo estranho e não era na novela, faltava algo, ela sentia, e não era o que faltava na novela.

Era o ronco do marido. Sempre que dormia Hermínio fazia um barulho de trator antigo, mais suave ao aspirar, mais poçante ao expirar. Tereza colocou a TV no mudo. Aprumou os ouvidos. Não podia ser, tinha algo de muito errado. Colocou o prato sobre o braço do sofá, chegou bem perto do rosto do marido, nada. Tentou sacudi-lo um pouco, conseguiu só um pouco mesmo, deu-lhe um tapão na cara, outro no meio dos peitos e mais alguns e ainda outras sacudidas, agora mais fortes: nada. Não podia ser... Não podia ser...

(...)



PARTE 02.

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