sábado, 24 de outubro de 2015

Sobre Mundos e Muros


De dentro do carro, com o ar no máximo
e um sonzinho bom rolando, passo os olhos
pela cidade que está muito mais suave,
muito mais amável, desse lado do fumê,

Penso que é como olhar Porto Velho
pelo Instagram, pelo para-brisa passam
as cenas como passariam numa timeline,
tudo vale um coraçãozinho,
dou like em tudo.

Alguém já disse que o aspecto geral
de Porto Velho é de completo abandono,
pode ser, mas daqui de dentro,
um certo bucolismo recobre tudo,

Sabe como é aquele lance
do feio que é bonito?
Pois é...

As pinturas gastas, os muros sem reboco,
os terrenos baldios cheios de mato,
as casinhas desenhadas em folhas de caderno
e erguidas conforme a estética inimitável
do improviso com ênfase na necessidade,
os cachorros esquálidos remexendo o lixo,
a gente atordoada pelo calor desértico,
tudo é um pouco lindo,

É um pouco triste também,
mas é daquela tristeza boa de sentir.

Estou realmente bem e se alguém
me perguntasse sobre o que acho
da cidade, eu diria, talvez suspirando:
IDÍLICA!!!

Pergunto ao Marcos o que é
que tá tocando, porque está bom,
ele diz que é um projeto de uma dupla
que gosta de usar vocais brasileiros
e franceses,

Imagino que esses não seriam
bons termos de pesquisa no Google
e que talvez o resultado fosse uma
página com um QUÊ? bem grande,

Mas não peço pra ele ser
um pouco mais específico,
outra coisa levantou o braço
e quer ocupar minha mente.

A gente para ali no sinal
da Calama com a Andreia
e me espanto um pouco por ver
um bêbado imundo largado na calçada
e achar alguma beleza na cena.

É algo como se uma parte
da minha mente cutucasse e
dissesse pra outra parte:
Olha ali, que bebinho lindo!

A outra parte,
pouco afeita a contemplações,
acha estranho.

Trabalho no 5º andar de um dos prédios
do CPA, onde tem uns janelões e ar condicionado,
de lá do alto dá pra ver a cidade e o Madeira,
dá pra ver a ponte, tudo em perspectiva,
também fica bem bonito, dá pra perder
uns bons minutos olhando.

Penso que se só andasse de carro,
morasse no alto de um prédio e olhasse
a cidade das janelas de um apartamento
e pelo para-brisa, com certeza teria
escrito aquela redação:

“Porto Velho - Cidade Maravilhosa.”

Acho que toda a turma do 3º do EJA,
vulgo supletivo, teria concordado
de cara com a proposta da professora
e corrido ao papel pra derramar louvores
sobre Porto Velho.

Acho também que ninguém ia protestar
ou chamá-la de doida e aquele cara
não ia dizer PORRA DE VESTIBULAR
quando ela explicasse a importância
de fazer uma redação.

Mas aconteceu de a turma ser
formada por pessoas que moravam
em bairros, alguns no São Sebastião,
em casa penduradas em barrancos,

Aquela turma sabia
o que era o calor portovelhense,
a aridez, o torpor, a ardência,
conhecia a parte feia da cidade,
vivia nela.

A gente tinha trabalhos pesados,
uma vida de chumbo e toneladas na cabeça,
tava estudando só pra cumprir tabela,
não tinha a menor possibilidade
de a gente reconhecer as maravilhas
da cidade.

Quem pode reconhecer
o que nem conhece?

Pra encurtar um pouco a conversa,
vou dizer que tive sorte, tive a sorte
de atravessar algumas das realidades
portovelhenses,

Realidades, meu amigo,
no plural mesmo.

Taí algo que me intriga:

Às vezes,
vizinhos de muro
vivem em mundos
muito distantes.

Disse mundos querendo dizer:
RE-A-LI-DA-DES!!!

Pense comigo e depois me diga
se não é coisa realmente intrigante:

Tem um pessoal que vai passar
a vida toda num barraco absurdamente quente
pendurado à beira de uma vala fedorenta
trabalhando em obras e fazendo bicos pra
ter o que dar de comer aos filhos,

Enquanto isso, outro pessoal,
que mora depois do muro do condomínio,
não vai saber nem o que é calor
exceto quando estiver andando
pros seus carros com ar condicionado.

Cada um vai ter sua versão da história
sempre em conformidade com o que tem
do lado de dentro do seu cotidiano,

Eu fico pensando,
muita gente vive numa parte
e acha que essa parte é
o todo da cidade...

É foda.



                                                               
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Um comentário:

  1. As vidas das pessoas se tornou algo muito estranho, por exemplo todos estão em um estado como que automático onde olham somente para seus umbigos(frase pronta)...
    Então se tornaram como que robôs em sua inatividade não dispostos a lutar para mudar o mínimo, quem o faz se destaca, negativa ou positivamente, por que o diferente é o destaque.
    Imagina um tele jornal sem as bizarrices e violências outrora inimagináveis.
    Ou quem se destaca para ganhar um prêmio nobel?
    Pessoas que fazem algo diferente! Que lutam contra o sistema, burlam o sistema, criam um novo sistema...
    E os da mesmice continuam na mesmice...

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