quarta-feira, 21 de maio de 2014

Pintura do Amanhã



1.
Desfazer-se,
de uma só vez,
da mesma aquarela com que nossa ingenuidade
coloriu um futuro inteiro, de cada traço ou forma
do que sonhamos pro amanhã,
Não é fácil…
nunca é fácil e, ainda menos,
quando o desejo é outro.
Botar tudo fora, tintas e pincéis
e abandonando a tela pronta, ver mais uma vez
o dourado dos sóis vindouros (que não mais nascerão),
o azul dos céus ideais (que não se realizarão),
as flores das estações seguintes (que não chegarão),
desbotarem, apagarem-se.
Deixar o solvente do esquecimento
ir se derramando, porque é hora de esquecer,
de deixar pra lá, e
ver dissolvendo o quadro das esperanças,
e deixar que dissolva e escorra
e encharque o chão das muitas cores
de novo liquefeitas,
Ver essas cores liquefeitas, diferente de antes,
quando sua mistura proveu novas cores,
se misturarem num mesmo
tom estranho e indefinido,
inutilizadas.
Limpar a tela do futuro,
mas sem esperar o branco nada,
o branco inédito das coisas não vividas,
pois que sempre qualquer coisa fica (e ficará),
uma cor, um risco, uma ranhura, um riso antigo,
um dia bom, a marca forte do esboço.
Não é fácil…

2.
Vejo escorrendo as cores do amanhã,
a vida o fixou e o achou de desfixar,
o amanhã que já fora pincelado
entre o agora e o futuro,
escorre…
Ah, mas quem está livre das forças
desconcertantes do mundo, de si, do outro?
Pois foram essas que forças perturbaram
o passeio alegre dos pincéis oníricos
sobre o seu campo de passeio, os dias vindouros,
e diluíram as tintas e rabiscaram
sobre tudo…
Tudo o que viria, o depois, agora
escorre, num pequeno córrego,
o pigmento dos sonhos se abisma ao solo,
num fio tão fino e fluído, tão raro,
tão difícil montar o quadro, tão fácil ele
se desfaz diante dos olhos.
E apesar das correções e do que não
pôde ser corrigido, que bonito que era
até uns dias atrás! – a pintura do amanhã.
Escorre,
e, em pouco, onde esteve o amanhã
que se pintou
no decorrer dos dias e noites
e de suas e nossas pinceladas,
não haverá senão uns tons de cinza,
a imprecisão de algumas formas
soltas, secas, simples.
Talvez, sóbrias,
talvez, não.
Depois, lavarei as mãos, os braços,
o avental, e tentarei limpar do corpo,
da mente, as esperanças que
teimarem, já sabendo que não sairá
tudo, que sobre a pele sempre haverá
algo, persistindo.
Lavarei do rosto as tintas e as lágrimas,
o riso e as mágoas, todas as manhãs
até que a vontade ressurja
e eu possa colorir o amanhã,
não aquele outro, mas este,
o que ficou…

3.
Eu, que tanto sei de recomeços,
também sei quão pouca
é a vontade de recomeçar
em quem tanto sabe de recomeços
mas não quer descobrir
senão meios de continuar,
de andar um tanto mais
pelas curvas do mesmo caminho.
Sei que ver passar, na vida,
sei que ver ficar para trás,
o que desejamos permanente,
sempre toma um tanto da gente,
e dos nossos motivos, aquebranta.
Contudo, é preciso
assumir, que de então para frente,
não é possível fazer melhor que o feito,
não é possível mais,
não é mais possível,
Nada mais dessa obra riscada
e enodoada pelas mágoas,
desbotada em partes,
rasgada, noutras,
nada, pro amanhã,
terá proveito.
Desse amanhã por sobre o qual
pichou o vandalismo dos maus sentimentos,
convertidos em atitudes más,
me resta aceitar seu comprometimento,
e que não adianta mais tentar,
não vale a pena.
Não adianta mais…

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