sábado, 8 de novembro de 2014

Mãozinha







 

Ele estava sentado, sozinho, em um dos bancos do pátio da escola, vendo acontecer na nova escola exatamente o que acontecia na antiga. Hora do intervalo, os outros meninos e meninas, de 11 a 17 anos, se entretiam com suas coisas, uns jogavam bola, outros mexiam em seus celulares, ou só conversavam e ele ali, distante de todo mundo.

Era já o segundo mês na nova escola, ainda não tinha feito um amigo e pensava sobre os comentários que os outros alunos já deviam estar fazendo, a fala deles chamando-o de mãozinha com um misto de pena e repulsa. Enquanto deixava a lata de refrigerante e pega a saltenha do banco com a mão esquerda, pensava no que o professor, aquele idiota, tinha dito.

Este professor passou um trabalho em grupo, mas como ninguém queria o Carlos Eduardo no seu grupo, o professor quis obrigar os alunos a aceitarem o menino, mas aí, um deles praticamente gritou, ah, não, logo o mãozinha? A sala inteira riu. O professor, querendo dar lição de moral, falou, a gente tem que aceitar as pessoas como elas são, com suas aptidões e (frisando bem as palavras) suas dificuldades… Foi humilhante.

Mais até do que a vez em que outro professor teve que mandar um dos alunos deixar de brincadeira e desocupar a cadeira especial do Carlos Eduardo. Era uma cadeira para canhoto, só isso, mas a palavra especial dita com muito cuidado fez com que Carlos Eduardo se sentisse um excluído. O menino tinha sentado lá só de sacanagem, Carlos Eduardo fingiu que não viu e foi se sentar numa cadeira para destro que, aliás, não sentia dificuldade alguma em usar. Mas o professor tinha que fazer aquilo...

Temos que aceitar as pessoas… Carlos Eduardo, com seus 13 anos, dessa vez, diferente da vez da cadeira, não se segurou, saiu correndo e foi chorar no banheiro nem aí para o risco de também o tratarem por o chorão, filhinho da mamãe e por aí vai. Acabou fazendo o trabalho sozinho e desistindo de tentar fazer alguma amizade ali. Não sabia por que faziam tanto caso por ele não ter a mão direita perfeita, mas já tinha vivido o suficiente para saber que era assim que as coisas eram.

E então, enquanto começava a se conformar com a situação que era desconfortável, mas dava pra ir levando, cara de peixe, aluno do 9º ano, com 16 anos, acompanhado por sua turminha já bastante conhecida pela diretora da escola, chegou e exigiu: ei, mãozinha, me dá um real aí. Carlos Eduardo disse que não com um tímido movimento de cabeça, acrescentando, nem tenho. Cara de peixe insistiu, ei, só porque a senhorita é deficiente acha que eu vou aliviar? Não vou não. Amanhã, ou tu me dá esse real ou vou bater na tua cara.

No outro dia, mesma cena, praticamente mesmo diálogo, mas dessa vez, cara de peixe se adiantou, pegou a gola do Carlos Eduardo e disse: umbora, mãozinha. Carlos Eduardo foi rápido. E quem estava vendo a cena pode testemunhar as estética e eficiência daquele soco, desde o seu surgimento, com o fechamento da mão esquerda, passando pela parábola ascendente que desenhou, até o momento do impacto: Poft! Bem no meio da cara.

O circo estava armado. Todos já se acotovelavam formando um círculo em torno dos dois e alguns gritavam briga! briga! briga!. De um lado, cara de peixe, recuperado da pancada, aprumava os punhos e dizia, ah, é?, ah é?, dando uns passinhos esquisitos de um lado pra outro, como um boxeador. Do outro lado, Carlos Eduardo estava quieto, com medo, muito convicto de que ia levar uma surra, mas não ia correr. Estava cansado de correr.

Carlos Eduardo se ajeitou como pôde, não tinha prática em lutas. Se firmou e ergueu as mãos meio inseguro do que é que ia fazer, ia enfrentar, ia dar um jeito. Cara de peixe deu um empurrão nele, depois outro. Parece que existe um código mundial e nele está escrito que não se começa nenhuma briga sem o empurra empurra. Atendito o protocolo, cara de peixe partiu pra cima.

Carlos Eduardo, não porque quis ou tivesse planejado, mas porque alguma força maior (provavelmente originada na medula) mandou e ele não pôde senão obedecer, fechou os olhos e esperou a pancada chegar com os antebraços protegendo o rosto. Mas a pancada não chegou. Ele abriu os olhos e viu que uma menina segurava o cara de peixe. Ela gritou, vai bater num aleijado, pô? Carlos Eduardo, talvez ainda sob o comando daquela força, respondeu na hora: aleijado deve ser o teu pai, sua puta.

Os envolvidos foram pra diretoria. Cara de peixe, conhecido por ali, começou dizendo que o novato tinha começado. O novato estava preocupado se iam chamar a mãe dele ali ou se ia ser suspenso. Nem uma coisa nem outra aconteceu. A diretora mandou os dois voltar pra suas salas e disse, acompanhando a frase com um gesto muito expressivo: estou de olho nos senhores.

Na manhã seguinte, lá estava Carlos Eduardo, dessa vez sentado na arquibancada da quadra da escola, com seu refrigerante, seu salgado, sua autopiedade juvenil e também um pouquinho de medo daquele tal de cara de peixe, quando ouviu, ei cara de bunda… Pensou que não era com ele, não podia ser, mas então, um menino com a mesma idade dele se aproximou e repetiu, ei, cara de bunda… Sorrindo como um amigo antigo. Sabe jogar bola? Vamos jogar.

Carlos Eduardo foi. E teve que ficar no gol, porque ninguém mais queria. Sua performance como goleiro não foi das melhores, mas ele era esforçado, defendia com o corpo inteiro, se jogava na frente da bola como essa fosse a sua missão na terra, seu destino. E afinal, foi graças a sua dedicação que seu time, levando menos gols, ganhou, foi uma vitória suada, mas vitória é vitória. Ele comemorou. E a verdade é que não se importou muito quando o seu time perdeu a segunda partida, estava sentindo que dessa vez seria diferente.





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