domingo, 25 de maio de 2014

A Falácia da Capacidade Individual




          Para a maioria de nós, senão para todos, não é muito difícil conceber a enorme dificuldade de vencer um jogo cujas regras sejam meticulosamente estipuladas não para uma competição justa, mas conforme uma distribuição desigual de favorecimentos e desfavorecimentos, quando se está do lado para onde são endereçados os segundos e não chegam os primeiros. Algo difícil de imaginar, e podemos afirmar até mesmo sem muita reflexão, seria o campeão de um jogo qualquer do qual ele não soubesse as regras. A despeito disso, vejo cada vez mais disseminada a ideia de que o sujeito encontra em si tudo o que precisa para alcançar o que consideramos atualmente ser bem sucedido, e a se inflar o número total daqueles já convictos de sua realidade.

          Minha pretensão aqui, não é acusar a quem quer que seja de incapaz, na verdade, sou do tipo que confia nas próprias aptidões e na sua relevância, em contrapartida, assinalo que não importa o quão habilidoso seja um jogador se a ele faltar a habilidade fundamental de entender o jogo que está jogando. Imagino como deve ser difícil pelo menos considerar o que vou dizendo, em especial, quando já se está plenamente convencido de que é possível chegar aonde os desejos mandarem tendo como combustível galões de força de vontade e tração nas quatro rodas, mas pensar que tudo o que precisa para mudar a sua vida ou você mesmo é subestimar, senão ignorar completamente, a importância das condições do meio onde você está inserido na determinação tanto de como anda a sua vida, quanto você.

          Embora seja um modo muito eficaz de tolerar através da esperança de transformação os males de um presente ruim (nos dirá Raul Seixas “quem não tem presente se contenta com o futuro”), a visão de que se pode tudo, atualmente constitui o tipo mais propagandeado de superestimação da própria força e só se pode sustentar no indivíduo, só pode ser levado a sério, mediante uma obstinada negação das influências do mundo e do quanto a dinâmica das situações ao redor determina tanto o modo de viver quanto o de ser deste indivíduo, determinando, por conseguinte, o alcance dos projetos que, porventura, iniciar.

          A despeito do que se acredita na atualidade, as condições do mundo em que estamos inseridos contém aspectos cuja compreensão compõe entendimento fundamental para o planejamento e realização de mudanças. Desse modo, a capacidade de cada um em mudar o que consiste num sistema sustentado por muitos, todos igualmente competidores, e por diversas circunstâncias facilitadoras, é algo realmente (para não dizer assustadoramente) bastante restrito.

          Além do mais, é ou não é um bom mecanismo de manutenção do status quo (diriam alguns, eu digo: de tudo como está) incentivar o entendimento de que aptidões pessoais bastam para a realização do que quer que seja, já que, em primeiro lugar, isentando da necessidade de compreender o mundo em derredor, compreensão sem a qual ninguém conseguirá aplicar corretamente esforço algum, reduz-se a potencial influência que qualquer um possa ter neste mesmo mundo, e, em segundo lugar, concentra sobre os ombros do indivíduo o peso do fracasso, estimulando a crer que fora ele, somente ele, o culpado e não o fato de haver um mundo organizado ao seu redor para que fracasse.

          Vamos estender um tanto e especificar outro tanto a analogia estabelecida entre jogo e vida para esclarecer um pouco melhor o argumento: imaginemos um sujeito hipotético que vindo de um país cujo esporte tradicional não seja o futebol. Agora, coloquemos esse sujeito hipotético em campo e, em seguida, pensemos um pouco em quais serão suas atitudes. Num primeiro momento, ele estará completamente perdido. Certamente, que muitas atitudes e situações irrisórias poderemos supor a partir daí, ele corre pra lá, corre pra cá, sem saber direito o que faz ou por que o faz, apenas imitando o que os demais jogadores fazem. Aqui, já podemos defender que a relação entre o quanto ele vai se esforçar e o seu sucesso no jogo não é proporcional. Muito esforço, pouco sucesso.

          Cedo ou tarde, considerando que o sujeito hipotético tenha uma boa capacidade de entendimento, ele vai entender primeiro, que faz parte de um time, conclusão a que chegou observando a cooperação entre um número certo de jogadores, e segundo, que o objetivo do jogo é fazer a bola passar no meio daquilo que ele não sabe se chamar traves, passando pelos bloqueios daquele que ele não sabe se chamar goleiro. Será um grande passo para o nosso sujeito hipotético, mas concordaremos com facilidade que, entender o mais básico do futebol não impedirá ninguém de ser o mais disfuncional jogador de todos os tempos.

          De modo muito semelhante, podemos especular a respeito do sucesso dos indivíduos que, confiando tão somente nas próprias capacidades a ponto de crê-las como ferramentas suficientes para a realização do que quer que desejem, não entendem senão a dinâmica mais básica do que lhes circunda. Certo, da mesma forma como o sujeito hipotético, num lance improvável, a despeito das probabilidades, pode marcar um gol, qualquer um indivíduo, contrariando os mesmos cálculos, pode ser bem sucedido em qualquer atividade na qual se meta a fazer, mas aí, não é o caso de se confiar nas próprias aptidões, mas na sorte e se é pra confiar na sorte e sobre ela depositar o mais das esperanças, então, muito melhor que investir e orientar custosos esforços cotidianos é jogar na loteria.

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