quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Rolo




Era um dilema. Nada menos que um dilema, o que se passava dentro da cabeça dele. Com um pouco de atenção e qualquer um perceberia que ele não estava no seu normal. Não era nada de mais, alguma palidez no rosto, um pouco de impaciência pelas pernas que balançavam, nos dedos que de vez em quando esqueciam de preencher a tabela do excel para tamborilar na mesa e aquela única gota de suor frio e nervoso descendo pela lateral da testa, só o suficiente pra demonstrar que nem tudo estava bem.

Sentado na sua cadeira, fazendo uma força horrível pra manter o disfarce, a cara mais normal possível, ele que tinha resolvido esperar passar, esperava, era um mal passageiro, em breve ia passar. Daqui a pouco passa, ele pensava, pedia, rogava. Mas não passava, não passou, piorou, e então ele decidiu deixar de lado aquela frescura de não usar o banheiro do trabalho. Ou isso ou teria que trocar as calças.

Ele respirou fundo e levantou, foi pro banheiro. Não tinha papel, puta merda. Saiu do banheiro decidido a voltar pra sala e resistir, mas a determinação foi muito menos intensa do que os repuxos dos intestinos, então, passou direto pela sala e foi na copa. Perguntou se tinha papel e ouviu um pra que? que, naquele momento, lhe pareceu muito indiscreto, era a lupa da situação. Ele respondeu com um risinho nervoso acompanhado por um movimento de sobrancelhas e cabeça que traduzindo daria algo como preciso mesmo responder?, mas que a mulher da copa entendeu mais como um não tá vendo? muito do mal educado.

Equívocos não são raros na comunicação gestual, seja por imperícia de quem gesticula ou de quem interpreta, assim que estamos quase sempre querendo dar a entender isso e dando a entender aquilo, tanto quanto interpretando assim, quando era assado. E esse foi um pensamento que ele não teve quando, olhando as feições das mulheres da copa, entendeu que devia se envergonhar de alguma forma, pelo menos um pouco. Agora, não sabia se pelo gesto feito ou pelo que o rolo de papel higiênico indicava que iria fazer. Os intestinos pediram adiamento para a questão, no que foram imediatamente atendidos.

Depois de receber o pedido, ele deu uma volta em 180 graus no próprio eixo e viu o banheiro, o lugar propício pra resolver aquela questão. Estava a algumas poucas dezenas de metros, depois de um corredor que lhe pareceu interminável e de repente, aparentando ter muito mais portas do que de fato tinha (e assim aumentando a possibilidade de olhos curiosos e inibidores como os das mulheres da copa). Ele não ia desistir. Deu o primeiro passo, resoluto, depois o segundo, o terceiro, o quarto, experimentando aquela sensação de só mais um pouco que enche de alegria o coração daqueles que estão chegando aonde querem chegar. Mas aí, pareceu um pesadelo.

Como se todos os que poderiam deixar para sair de suas salas noutra hora fossem repentinamente assediados por uma vontade irresistível de sair naquele exato momento, todos os que poderiam deixar para sair de suas salas noutra hora saíram naquele exato momento. Qualquer um que acreditasse em destino, teria naquela hora, vendo aquela cena incrível, um punhado de portas se abrindo ao mesmo tempo, a certeza de que alguns eventos não acontecem à toa. Qualquer outro que se preocupasse mais em ver expressões faciais teria percebido naquele momento estampado no rosto do apertado uma expressão meio irritada, meio conformada que deixavam claro as palavras que quiseram sair e não saíram: só me faltava essa!

Ele não ia mais recuar, não podia mais recuar, ia passar direto pelos colegas de trabalho, nem diria bom dia, nem oi, nem nada, ou diria, de passagem, passando sem diminuir o passo. Tudo bem pegar de mal educado uma vez na vida, além do mais, todos podiam ver no rosto dele a pressa que tinha e se aquele rolo de papel higiênico apertado na mão nervosa e impaciente não sinalizasse a razão, não tinha mesmo tempo para explicar, explicaria depois, fosse o caso, não fosse, tudo bem também, era o jeito, nem sempre é possível combinar nossas urgências pessoais com as solicitações da cortesia social.

Era uma questão de pesar o que seria pior, o risco de parecer mal educado ou o de fazer nas calças e ter que sair do emprego, da cidade, talvez até do Estado. Melhor correr o risco menor. Foi o que ele fez. Claro que essas operações mentais e essas tomadas de decisão ligeiras e ponderadas não aconteceram de forma tão lúcida como vai expressa. Na cabeça dele, era uma confusão, os intestinos pediam, exigiam, a ele cabia obedecer, ele obedecia e o que lhe surgia na mente não chegava a ser um pensamento superior, era mais uma impressão, algo como um instinto a que algumas palavras e imagens se juntavam igualmente obscuras. A única coisa realmente clara era a iminência do desastre.

Passou por um, passou por outro, desvencilhou-se dessa mão, esquivou-se daquela conversa, daquele olhar. Mais adiante, deu um drible noutro, sempre levantando o rolo de papel e fazendo uma cara que não dava pra saber exatamente o que queria dizer, cada um entendia o que queria, ele já não estava nem aí, não respondia mais pelos seus atos, os intestinos tinham assumido. Chegou à porta do banheiro, abriu, empurrou um vulto, o braço foi que fez a vez da boca pra pedir licença, com o caminho desobstruído, os intestinos se distraíram, o cérebro voltou a mandar: seria o presidente da firma aquele vulto empurrado? Não podia ser, ele nunca usava o banheiro comum, tinha um banheiro na sala dele, por que usaria este? Mas era, minha nossa, era o presidente!

Devia voltar e se desculpar, imediatamente, pensou, com o cérebro, tinha que manter o emprego, mas os intestinos interviram, rápidos, bravos, contrariados, veementes, desconsiderando títulos e hierarquias: e nós aqui? Ele que se desculpasse depois, outro dia, noutro momento, agora tinha algo pra resolver, algo que não podia esperar mais, nem um segundo mais. Abriu e fechou a porta atrás de si com uma batida forte, baixou as calças, sentou-se no vaso e nada aconteceu. Esperou. É claro que estava para acontecer, ia acontecer, esperou mais um pouco. Não, não pode ser, só pode ser brincadeira, PELAMORDEDEUS! 

Não estava mais com vontade.





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