sábado, 7 de fevereiro de 2015

Tubarão Sabia Qual Era o Problema



1.
A gente chamava ele de tubarão,
ele tinha uma bela de uma nareba,
era o ponto referencial da sua cara,
da pessoa que existia em torno,
que era um soldador.

Tubarão trabalhava com a gente
numa empresa de metalurgia da
construção civil, 14 anos de trabalho,
e agora, era soldador, mais 10 ou 15
daquele trabalho e teria sua própria equipe.

Mas nem em mil anos
teria sua própria empresa
de metalurgia da construção
civil, igual a mim e a todos
os outros.

A gente estava em cima do telhado,
colocando telhas de alumínio de uns
6 ou 7 metros, o trabalho era sempre
pesado, mas ali, era o inferno porque
o sol das 2 da tarde refletia nas telhas
e não nos dava escapatória.

Pra distrair, a gente conversava,
besteiras, bobagens e putarias em geral,
bebedeiras, brigas, contravenções,
dia a dia e coisas que fugiam à
curva da normalidade, pra cima,
ou pra baixo.

A gente era tão rude quanto
o trabalho, às vezes, um pouco pior.

Mas no meio de tudo aquilo,
do sol, das falas obscenas
ou maldosas, das ameaças,
das gargalhadas e dos assobios
às mulheres que passavam lá
embaixo,

Tubarão limpou o suor da testa
com a manga do jaleco imundo
de anos e anos de graxa, poeira,
faíscas de metal, fuligem e solda
e disse, assim do nada:

- Sabe qual é o problema da juventude?
Ela não pensa que vai envelhecer.


2.
Se você for capaz de aproximar os extremos,
vai concordar comigo quando digo que o
mundo é um lugar insano.

Veja bem, conheço dondocas e dondocos
que agora mesmo estão angustiados
com a ideia de serem médicos ou advogados,
querem ser artistas, fotógrafos, atores, poetas
e por aí vai.

Querem passar o resto de seus dias
envolvidos com algo maior, algo
que tenha sentido, geralmente,
esse sentido tem a ver com
beber muito e usar substâncias
para a expansão da mente.

Enquanto isso, tem um monte
de jovens pedalando de 10 a 20 km
ou passando boa parte de suas
manhãs dentro de ônibus para
fazer o curso de panificação ou
de mecânico de motocicleta
no Senai, Senac, ou sei lá onde.

Tem coisas que você não tem
que se aplicar muito pra compreender,
será perda de tempo, ainda mais
porque você tem é que aceitar
e não compreender.

Essa é uma delas, porque por mais
que arranje os motivos explicações
pelo menos razoáveis pra essas coisas,
longe de você, elas têm seus próprios
motivos e explicações, geralmente muito
diferentes daqueles que você imaginou.


3.
Com 15, 16 e 17 eu sonhava
com ter 18 e o motivo era simples,
poder comprar bebida e cigarros
e entrar em lugares de má fama onde
menores não entrariam
(mas entram, é claro).

Eu tinha 20 e poucos anos
quando ouvi o que o tubarão falou,
e depois que completei 18 e pude
fazer oficialmente tudo o que já fazia
extraoficialmente, não pensei mais
no assunto.

Pra mim, só existia o presente,
era “um imediatista”, como disse
o cara do exército quando fui
me apresentar, uns anos antes,
e declarei que não queria servir.

Ele disse isso e falou sobre tudo
o que tinha feito no exército, isso e aquilo,
eu respondi que era esse o motivo
de eu não querer servir, ele me
deixou pra atender por último.

Fiquei por lá, até as 2 da tarde,
sentado numa cadeira de plástico,
tentando me distrair com pensamentos
diversos.


4.
Eu não tinha porque pensar no futuro,
já sabia, intuía, na verdade, e a intuição
é uma forma de saber com as entranhas, 
repetiria a sina dos meus pais, 
a vida toda trabalho sem sentido 
pra manter uma vida sem sentido.

Minha esperança era morrer
cedo e não ter que passar
por isso.

Era assim que pensava na época,
o relógio estava contando eu tinha
era que aproveitar o máximo antes
da minha hora chegar.

Acho que é isso que comunica todos
os jovens descontentes com o futuro,
não querem repetir a vida dos pais
e dos contemporâneos dos pais.

Se um cara não quer ser médico
ou advogado, não é porque não queira
ser médico ou advogado, é porque
o pai ou a mãe, ou os dois, são,
o que não se quer é aquele
futuro empacotado e entregue.

Ninguém mais que os jovens,
que ainda acreditam nas próprias
expectativas e esperanças e sonhos,
sente o que há de errado com o mundo,
então, é normal que não queiram
herdar o mundo todo errado de seus
pais,

Embora, seja o que acontece
para a maioria.


5.
Não era disso que tubarão
estava falando, ele estava cansado,
os dias de trabalho iam pesando cada
vez mais e nele, ia faltando força,
ia aparecendo uma dor aqui
outra ali.

Tubarão não era mais o “menino”
de 14 anos atrás, e o trabalho
estava acabando com o que
restara dele, gradualmente,
como uma tortura a longo
prazo.

A gente trabalhava de domingo
a domingo, das 7 às 18, e todo
dia tinha algo pesado pra fazer
e no meu caso, tinha as bebedeiras
e a cross.

Então, eu entendi.

Me vi 14 anos no futuro,
soldador, todo dia saindo de casa
às 6, de bicicleta, chegando no
trabalho às 7, pausa para um
almoço horrível ao meio dia,
retorno ao trabalho às 1,
saída às 18.

Cada vez mais fraco,
cada vez mais descontente,
sem opções.

Eu tinha que fazer algo
a respeito.




                                             
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