sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Os Dentes do Cavalo Dado



Carlos estava puto da vida. Com todo mundo, com tudo, todos, qualquer um, com seus pais. Principalmente com seus pais e mais principalmente ainda, com seu pai. Aos 14 anos a máquina da revolta ainda está nova, então, funciona melhor do que devia. Trancado no quarto, pensava no que ia fazer, sentia vontade de fugir, de brigar, de bater em alguém, de se jogar na frente de um carro, de cima de um prédio.

Ele não entendia como é que não o entendiam. E aquilo que o pai tinha falado? Que história era aquela de tu não está em condições de escolher presente, não! O que aquilo queria dizer? Só porque era pobre, não podia ter gosto? Não podia escolher o que ia usar? Tinha que aceitar o que lhe dessem e ainda agradecer? Não! Ele não. Carlos andaria nu, mas não com o que não queria usar.

O problema nem era Carlos ser orgulhoso ou algo do tipo, como pensou e gritou o pai, o problema era totalmente outro. A tia de Carlos dava coisas velhas e acabadas pra ele, como se fossem presentes. Se Carlos fosse orgulhoso, não aceitava, mas ele aceitava e até ficava muito agradecido. O problema é que gratidão não era suficiente, a tia de Carlos lhe dava lixo e depois cobrava em troca todo o tipo de favor e, pior ainda, se mostrava ressentida quando ele não queria capinar o seu quintal, pintar sua casa ou arriscar a própria vida pra limpar o poço ou lavar a caixa dágua, afinal, ela dava de um tudo pro menino.

Era uma desgraçada mesmo. Se Carlos não queria fazer de graça, ou a preço de roupas, brinquedos e outros itens, todos velhos, o que qualquer outro cobraria pra fazer, a sem vergonha corria ao ouvido da mãe ou do pai dele e com as artimanhas de um vitimismo aprimorado ao longo de toda uma vida, convencia a irmã ou o cunhado. Sobrava pra quem? CARLOS!

Mas Carlos não seria mais besta, tinha entendido como tudo funcionava e por isso, decidiu mudar e dizer não, nunca, meta na bunda essa porra. Não ia mais aceitar nem bolacha com manteiga da tia, porque, sabia, não era de graça, nada era de graça. Se a tia lhe dava um café num dia, no outro, estava praticamente obrigando Carlos a mudar um guarda roupa de lugar. Se o chamasse para almoçar, era certeza, ele acabar tendo que lavar o carro.

Fazia um tempo que Carlos estava percebendo isso, percebendo e se revoltando. Falava pra mãe, mas ela só sabia dizer que todo mundo tem mesmo que ajudar a família. Falava pro pai, mas esse era ainda pior, mandava ele calar a boca e deixar de ser preguiçoso. Falou pros dois que a tia dava roupa velha e queria que ele fosse seu empregado, mas os dois disseram, como se tivessem combinado, deixe de ser mal agradecido. Não tinha com quem contar, tinha que dar um jeito por si.

Carlos não era preguiçoso, ajudava em casa, lavava louça, estendia roupa, passava pano na casa. Ajudava o pai também, trocar a caixa dágua, telhado e por aí vai. O foda era a obrigação. Pior ainda, a pessoa cobrar como se ele realmente estivesse devendo. E Carlos nunca podia dizer agora não, amanhã, depois eu ajudo. Tinha que ser na hora que a tia pedia, se ele falasse que estava ocupado, que só podia ir depois, a quenga corria pra mãe dele.

Carlos estava cansado disso. Primeiro, tentou conversar. Não deu certo. Ou fazia o favor na hora que a tia pedia, ou dava uma confusão enorme na família. Depois, começou a xingar, as brigas aumentaram e ele sempre era o errado, porque a tia isso, a tia aquilo, uma santa! Como era inteligente e descobriu o que podia fazer pra mudar a situação.

Naquele dia, a tia lhe chamou pra lhe dar um negócio. Ele disse de imediato que não ia, que não queria, mas a tia insistiu. Esticou a cabeça pela janela (eram vizinhos) e gritou: Carlim, vem cá, tenho um negócio pra te dar. A mãe de Carlos, ouvindo a gritaria, perguntou pro filho, não vai ver não o que a tua tia quer te dar? Carlos disse que não ia. Na verdade, disse nem fudendo. A mãe se irritou e mandou ele deixar de ser mal educado e ir ver o que era. Ele foi. Bufando de raiva, mas foi.

Era um tênis. Mas não um tênis velho, usado até o limite por algum dos seus primos, prontinho para ir pro lixo. Era um tênis novo, recém tirado da caixa, ainda com aquele cheirinho de tênis novo. Carlos pensou na mesma hora, a puta dessa velha é muito esperta...

Carlos estava realmente precisando de um tênis, já estava indo pra escola de havaianas velhas há umas duas semanas. Não aguentava mais a zoação. Ficava todo mundo lhe chamando de pé sujo, mendigo e coisas do tipo, era foda. Por outro lado, não aguentava mais ser escravo da tia. Carai, o tênis tava estralando de novo.

Pegou o tênis nas mãos, a tia mandou que experimentasse, era dele, afinal. Carlos se imaginou na escola com aquele tênis de gente rica, um Adidas. Puta merda, ia ser foda. Quando deixou de sonhar, olhou para ela, sério como nunca antes, e disse, fulminante: enfia na bunda! Largou o tênis no chão e foi embora pra casa, já sabendo que ia ter confusão, mas decidido a não fazer mais nada pra tia.



                                           
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