sábado, 2 de abril de 2016

Paliativo


01.
Quando a cabeça da gente
tá lascada ou prevendo que
vai se lascar, se protege,

A mente da gente se protege
pra manter a sanidade, a mente
tem mãos que, pelo menos,
tentam segurar as pontas.

Isso é Freud, não o Freud
universitário, é o Freud
que li nos tempos difíceis
e que atualmente, está
misturado a um monte
de subjetivações liquidificadas.

Vou falar,
a partir dessas subjetivações,
de três formas com que defendi
a cara das mãos pesadas
da realidade.


02.
Como o Raulzito já disse
quem não tem presente,
se contenta com o futuro.

Pobre e sem expectativas
de futuro, eu sonhava
que ia ser famoso e rico,

Talvez não famoso,
mas com certeza,
rico.

Não queria, exatamente,
ficar rico, não queria - exatamente,
era continuar pobre.

Minha mãe comprava Tele-Sena
e a gente sonhava, juntos, eu ela
e meus irmãos na mesma pindaíba
compartilhando o delírio de sair
dela.

No delírio, a gente ganhava
muito dinheiro, ajudava os pobres
(a gente incluso, claro) e passava
o resto da vida bem.

Fantasia: taí o nome
do primeiro paliativo.

Eu sonhava, e sonhava alto,
mas não importava o quão
alto e longe fosse,

Não saía do lugar.


03.
Indiferença - é o nome
do segundo paliativo.

Com a indiferença acontecia
algo bem parecido, mas em vez
de sonhar pra dar uma amenizada,
eu simplesmente não ligava.

Geladeira vazia, bolso vazio,
nem sinal de esperança,

Eu me deitava no chão da sala,
fraco de uma dieta magra
de manga, pão e bolacha
da casa dos vizinhos,

Era só esperar a morte chegar,
que não demorasse, então…

Dá pra ver que não era
indiferença indiferente,
era uma indiferença
pessimista, catastrófica,

Uma indiferença desistente,
o pior era inevitável, então,
era sentar e esperar.

Eu esperava, esperava
e nada, eu já tinha desistido
e nada

Nada mudava.


04.
Com o humor, o terceiro paliativo,
também não foi muito diferente,
ajudava a suportar: o mundo
desabando e eu rindo e fazendo
piada.

Não consegui essa vigésima
vaga de emprego, não comer tem
o seu lado bom, estou uma tábua
de tão na moda, Hahahahahah
Chorava de tanto rir.

O pessoal achando que eu tava
doido, rindo da própria desgraça,
e eu rindo pra não ficar maluco
de vez.

Ria e ria muito, ria alto,
gargalhava, aí, quando
cansava de rir, mesma
coisa, tudo igual:

Um pouco mais ridículo,
mas igual.


05.
Fantasiar, não ligar e rir
me ajudavam a suportar,
mas queria mais que suportar
uma vida insuportável,

Por isso, comecei a bater cabeça,
comecei a me encucar, cismar,
ler mais, pensar mais, tinha
que fazer algo...

Foi aí que descobri um modo
de lutar, parece bobagem,
mas entendi que tinha
que largar o escudo.

O pensamento era simples:
o que me ajudava a suportar
o insuportável não me ajudava
a superá-lo, a deixar
de suportá-lo.

Os três, a fantasia,
a indiferença e o humor,
me ajudavam a suportar
o insuportável da situação,
mas não a mudar a situação.

Se eu quisesse mudar
alguma coisa tinha que
abrir mão dos paliativos.

E foi o que fiz dizendo
pra mim mesmo que o sonho
era só sonho, que me importava
sim e que no fim das contas,
nada daquilo tinha graça.


06.
Não foi fácil, nem rápido,
nem divertido.

Sabe quando um cara
arma o soco e o outro cara
levanta as mãos pra frente
dos olhos?

Pois o outro cara teria muito
mais chances de se defender
tirando as mãos da frente
dos olhos,

Quando descobri isso
passei a andar mentalmente
em guarda, sempre em guarda,
mas sem tapar os olhos.

Entendeu?


07.
Tem um caso que ajuda
a entender:

Um amigo meu sentia dores
nas costas, primeiro leves,
mas elas foram piorando.
Ele foi procurar um médico?
Não.

Começou a tomar anestésicos
e relaxantes musculares,
por conta mesmo.

As substâncias sumiam com
a dor, mas não com a causa
e nem com a possibilidade
de agravo.

Resultado:
passa um tempo e ele
tem uma hérnia de disco,
aí sim, ele foi procurar
um médico.

O que estou dizendo é que
não é bom esperar por uma
hérnia de disco existencial
pra começar a lidar com
as dores de carregar mundo,

O irônico é que eu e as pessoas
que conheço e que já chegaram
a essa conclusão, não chegaram
antes da situação estar bem feia.

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