sexta-feira, 30 de maio de 2014

Maus Pensamentos
















1.
Há desses pensamentos chamados maus que acontecem
como acontecem infortúnios a quem tenta a sorte;
há desses pensamentos inconvenientes como são
inconvenientes formigas passeando na mesa da cozinha,
ou baratas adivinhadas no escuro do quarto;
pensamentos contra os quais vociferam e advertem
o mais da gente e seus cuidados
excessivos e supersticiosos.

Há desses pensamentos que inquietam
e que podem contorcer a fisionomia de um homem
e colapsar o homem por detrás da fisionomia contorcida,
pensamentos contra os quais estão sempre eriçados
os pavores ancestrais da multidão.

Mas que fiquem tranquilos aqueles que temem,
pois não há o que temer, esses pensamentos maus,
terríveis, assombrosos, escandalosos, reprováveis,
não andam como às vezes andam as crianças travessas,
à espreita de incautos, para os surpreender e assustar,
pelo contrário, escondem-se, entocam-se, fogem,
e, nisso, em muito superam os gatos e as chaves de casa,
e não é possível encontrá-los sem sair para os procurar
e nem os ter enchendo as mãos sem antes ter as mãos vazias.

Há desses pensamentos capazes de revirar o mundo
de dentro pra fora, pelas vísceras, capazes de desfigurar um ser,
de o perverter, de o destruir sumariamente, todo e de uma vez,

Mas esses pensamentos não ficam tão à mostra
como numa venda, ou entulhando caminhos como pedras,
não se pode tropeçar à toa neles, num dia de passeio,
perambule o quanto for… Não meta mãos e unhas na terra,
não cave, não se suje muito de barro e não os encontrará.
Ouça o temor geral e não os encontrará.

Há desses pensamentos que ameaçam a ordem
de todas as coisas, esta ordem quebradiça inventada e mantida
pelo medo e pelo hábito e pela preguiça, mas que não perturbam
o sono dos cordatos que dia após dia dão um pouco de si
para a preservação de tudo como tudo está, para a repetição,

porque esses pensamentos (ah, esses pensamentos e suas virtudes),
são produtos de conquista e não chegam a quem não os quer ver chegar,
a quem não quer atravessar para o outro lado.

2.
Inquieta a alguns a persistente sensação de que basta
um pouco, um sopro, para que desabe a sua realidade,
e tombando suas colunas, tudo venha a desmoronar
e a ser não mais que ruína; eles têm razão, pois às vezes,
basta um pouco, um sopro, para um mundo vir a baixo,
o mundo de alguém, eu digo, um modo de ver o mundo.

Às vezes, uma fala é suficiente para aturdir o ser
e por à prova todas as certezas arrecadadas, mas
é preciso vontade, é preciso tentar, querer, é preciso
ir em frente, sobretudo desapego, coragem e um
tanto de desdém para consigo mesmo e tudo mais.

Eles, os que se inquietam, não sabem disso,
eis porque vivem sob o regime do temor, temendo
o dia em que da ordem (que não entendem direito)
derive o caos (que conhecem só de ouvir falar),
eis porque tanto se resguardam e se guarnecem
com o que podem e, a cada dia, é com mais fervor
que abraçam as colunas e com mais afinco
é que sustentam o mundo que sustentam.

Estes medrosos nunca vão tentar contra nada,
senão contra quem, mesmo temendo, tente,
vão tentar calá-lo, amarrá-lo e o devolver à fila
de onde não deveria ter saído, e contra ele
não serão avaros de violência e firmeza,
parecerão até outros, parecerão vivos!

Eu os vejo, e quase sempre me convenço
de que só não são mais tranquilos ou pacíficos, porque dentre
as tantas coisas que não sabem, não sabem que a mesma
intuição que os faz viver na iminência de um colapso (e por isso,
salvaguardarem-se de tantos zelos) a mesma que os refreia
e continuamente os livra dos riscos (para eles) frívolos da temeridade,
protege-os também, e para sempre os protegerá dos absurdos da especulação,
das movimentações de um pensamento funcionante.

Eles não sabem que nunca chegarão a ter certos pensamentos,
não sabem que estão a salvo, que não alcançarão certas conclusões,
e se as alcançassem, por acidente, ou por azar,
logo logo iriam espantá-las da cabeça para bem longe de si,
como quem cospe o que está quente demais para mastigar.

Mas são estes medrosos, estes, os que vivem em comunhão
pelo temor de algo de que só ouviram falar – o caos,
estes, que vivem acocorados debaixo da mesma redoma,
os que em mais número se espalham pela Terra,
são estes a quem mais interessa censurar aqueles outros,
os poucos que andam e correm e querem mais
e que, cedo ou tarde, quando se deparam
com pensamentos diversos, dizem:
bem-vindos!

3.
É sem motivo que o mais da gente teme esses pensamentos,
ao que desencadeiam, dentro e fora do ser,
e é igualmente à toa que de tudo faz para os afastar,
vigiando em si e no outro seu surgimento, seu desdobramento,
sua divulgação. Quem os deveria temer, a esses pensamentos
e suas consequências, são aqueles que os buscam, aqueles que
alinharam os pés segundo direções contra as quais
foram advertidos.

Esses sim, os que perseguem o além, o depois, o mais,
deveriam temer as conclusões a que podem chegar
pois elas, os virarão do avesso, esses sim deveriam temer,
pois quando um desses pensamentos adentra
a cabeça de algum incauto e aí encontra com que se manter
e se desenvolver, como uma infecção, vai alcançando
e contaminando e alterando ideias, conceitos, entendimentos,
vai destruindo valores, anseios, vontades, percepções.

Quando as faíscas desses pensamentos são produzidas
desatam-se minúsculas chamas, de onde surgem
fogos nem tão pequenos, que se reúnem, agigantando-se
num grande incêndio que, de repente, lança seus tentáculos
flamejantes por sobre o mundo cenográfico das coisas estabelecidas.

Tudo rui. E não é qualquer um que é capaz de suportar o nada,
o desmoronamento de si, de testemunhar a quebra de seus sonhos
e fantasias e ilusões, e vaguear pelos escombros ainda fumegantes
do que outrora chamou de eu, de mundo, de esperança,
não é pra qualquer um tolerar as atribulações de um fim.

Ninguém que se deixe iluminar pelo fogo da razão
mantém-se o mesmo ou permanece inteiro,
deveriam ter os corações palpitantes e as mãos suadas e trêmulas,
portanto, aqueles que os perseguem por conta própria,
que atritam pedras conceituais afim de acender ideias,
elas se alastram fácil e é muito fácil se incendiar.

4.
Deveriam temer, temer de verdade, temer com as vísceras,
a ponto de bater os dentes, e com todos os pelos do corpo,
todos os que buscam, pois os efeitos deletérios de
alguns pensamentos serão sua destruição.

Deveriam temer, também, os hábeis destruidores,
os iconoclastas, os questionadores,
os respondões, os maluvidos,
pois caso não sejam competentes criadores,
caso não sejam capazes de modelar
a partir do bruto barro ideativo
de depois dos seus recreios – a devastação,
de nada servirão, os grandes pensamentos,
a não ser como companhia para observar
a grande confusão, para a incrementar.

Deveriam temer todos os muito seguros de si,
porque esses pensamentos, esses maus pensamentos,
vão desafiar a sua segurança e, muitas vezes, mostrar a falta
de fundamento, as fraquezas, e trarão espelhos
honestos em demasia para espedaçarem suas imagens.

E aqueles a quem assediam inquietações não habituais,
a quem dominam preocupações incomuns, a quem tiram
o sono ideias fora dos moldes convencionais: o mundo
vai cobrar cada uma de suas temeridades.

Deveriam temer todos os que querem mudar
e ao mesmo tempo manter a estima pública,
porque é uma coisa ou outra, é preciso entender…
isso e ao seguinte: aquilo que buscam não será dado a vocês
sem antes corroê-los, transmutá-los, pervertê-los,
não receberão nada, essa é a verdade,
se houver o que receber, receberão os outros de vocês,
quanto a estes que agora são, deixarão de sê-los.

Deveriam temer todos aqueles que podem
alcançar os pensamentos que o mais gente teme,
mas quem teme o que mais deseja?

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