sábado, 31 de maio de 2014

Memórias de Um Leitor









Toda vez que vou numa livraria lembro de quando comprava livros numa banca de revista, na praça do half – sede da galera underground de Porto Velho. Eram edições horríveis, talvez feitas com papel higiênico reaproveitado, digo isso pela cor e pelo cheiro que tinham. Para uma pessoa que gosta de cheirar livros, aqueles não são indicados. Custavam 5 reais, não dava para esperar mais que isso, não é? Às vezes, o cara da banca, meu amigo já, me vendia fiado.

Foi ali, enquanto andava de bike e frequentava o cenário rock-metal de Porto Velho, entre manobras e bebedeiras, que reatei com os clássicos da literatura nacional que odiava na escola. Li Machado, Aluísio Azevedo, Raul Pompéia, Lima Barreto e muitos outros que nem lembro mais. Também foi naquela banca de revista que encontrei filósofos como Descartes, Comte, Engels e o principal, meu predileto, Nietzsche. A memória do dia que encontrei o Zaratrusta, o tempo tratou de apagar umas partes, de embaçar outras, ficou a impressão que tive ao ler o nome do autor e a sensação de que era daquele jeito esquisito que se escrevia “nit”, o nome que um amigo já tinha me falado. Comprei o livro.

A primeira vez que li o Zaratrusta, não entendi nada direito, mas ficou a lição da alegoria da Metamorfose do Espírito, o espírito primeiro camelo, carregando carga, depois leão, revoltado e depois, criança, capaz de criar. Perfeito! Eis aí algo a ambicionar, tornar-se a criança nietzscheana. Outra coisa que me ficou: a alegria de encontrar um filósofo tão irresponsável, tão boca aberta, capaz de falar o que em geral era silenciado e com um humor corrosivo. Ele falava de Deus como ninguém falava (não é à toa que me tornei ateu), dos povos, da arte, da própria filosofia, falava de muitos temas como ninguém ainda não tratou.

O caso de Zaratrusta é um dos muitos em que a leitura me ajudou a redefinir meu pensamento, minha postura diante da vida, do mundo, dos outros e diante de mim também. E é um dos mais recentes também, embora conte já alguns anos de acontecido, quando li, tinha uns vinte e poucos anos. Muito antes disso, dei uma boa passeada pel’O Mundo de Sofia, de Joustein Gaarder, e a partir daí passei a amar Filosofia, porque entendi que todas as questões que aparentemente estavam respondidas, não estão tão respondidas assim. Antes disso ainda, li Freud num dos verbetes da Barsa que um amigo de fliperama me emprestou, começando a “analisar” todo mundo a partir da teoria da mente tripartida.

A leitura em geral, me explicou o mundo inexplicável que me rodeava, me ajudou a decifrar as esfinges da vida, a resolver a questão de vida ou morte de que nos fala Gullar, me deu com que traduzir vertigem em linguagem. E não falo só dos livros de Filosofia ou da Barsa, os grandes clássicos da literatura nacional e mundial, puseram diante da minha vista a verdade de que o mundo era bem maior que o bairro onde morava e que havia respostas bem mais completas do que o é assim e pronto cotidiano.

Quando pequeno, eu me sentia muito burro, um tapado completo, um abestalhado, apesar das notas altas na escola, porque a mim, faltava essa sensação do óbvio, essa disposição para assimilar os porque sim! e os porque não! que me jogavam na cara. Faltava-me tato, tino, esse saber sem saber que é tão comum nas pessoas. Não entendia como a vida funcionava, e sentia que não ia entender nunca, já que ninguém me explicava nada, queriam que obedecesse, queriam que concordasse, mas explicar que é bom, nunca. Acho que por isso, conclui que seria um caminho solitário compreender o mundo e a gente nele.

Aprendi, portanto, lendo, pensando, observando, a responder importantes questões e nem digo filosóficas, mas coisas do dia a dia mesmo. Por que estudar, por exemplo, indagação que talvez só crianças façam, eu fazia até uns poucos anos atrás, marmanjo e não sabia, descobri uma razão muito recentemente quando fui trabalhar como auxiliar geral na metalurgia da construção civil – nome muito bonito para badeco, faz tudo. Tive que elaborar boa parte do que penso, preencher lacunas, assim que não é incomum ou surpreendente externar a minha visão para alguém, e ser chamado de estranho, até eu muitas vezes me acho estranho. A verdade é que aprendemos verdades em fontes distintas e muito difíceis de se comunicar.

Hoje os tempos são outros e outro também eu sou. Não me meto mais em problemas por não saber o que todos sabem, não me sinto mais um abestado (a não ser por conta de alguns comentários esdrúxulos que faço só de zoa), ninguém mais pergunta porque leio tanto, embora leia muito menos que antes por falta de tempo, mas não de vontade. Ninguém mais adverte: tu vai acabar doido. Acho que a maioria acha que sou doido, então, não tem o que advertir. Afora isso, quando quero ler algo, vou à livraria, peço pela internet. E no bem no meio de tudo o que não mudou nesse tempo, da infância pra cá, está a leitura e o reconhecimento de sua importância.

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