domingo, 1 de junho de 2014

Medo de Fogo



1.
Ouço muita gente falando de mudança,
falando que querem, que anseiam por mudança,
mas olhando bem, mas ouvindo bem,
dá pra perceber que o que querem
não é mudança.

Não querem alterar o estabelecido,
porque só podem partir dele,
só podem pensar dentro dele,
só podem viver nele,
segundo suas condições,
fora dele, não.

Ninguém pode, no começo,
mas eles nem podem,
nem querem tentar,

Porque o movimento que veem
não veem como um dos movimentos
dentre todos os outros movimentos possíveis,
veem-no como único movimento possível.


2.
Não, eles não querem mudar
porque a realidade que concebem,
também concebem como a única,
para além dela, não veem nada.

Não, eles não querem mudar,
porque não sabem elaborar verdades
a partir do que veem e ouvem e vivem,
e a mudança desmontaria
suas verdades prontas.

Não, eles não querem mudar,
porque verdades se despedaçariam
e sem saber construí-las, teriam
de esperar que alguém o fizesse
por eles.

No intervalo,
estariam desamparados.

Não, eles não querem mudar,
imaginam o desamparo, e calam
o que falavam só por falar.


3.
Talvez ninguém realmente
se interesse pela mudança,
já que mudar é jogar dados
para o alto.

Se tudo como está
não está bem, mas é suportável,
por que brincar com a sorte?

Se tudo como está
está bem, satisfeito,
quem vai querer arriscar?


4.
Tudo como está, talvez não esteja bom,
pra uns, talvez, esteja para outros,
mas é sobre tudo como está que está feito
o conhecimento de como tudo está,
mudando, outro conhecimento seria
necessário.

Mudasse e muito (talvez tudo)
do que vale para agora,
não valeria para depois,
quando o depois fosse o novo agora.

E seria preciso esperar
que as coisas se assentassem
para então, assentadas,
fosse possível retirar delas
o costume de estar com elas.


5.
As coisas se organizam de um modo tal
que alguns estão acima e outros,
abaixo, de modo tal que parece interessar
para uns e outros que fique assim
a organização das coisas.

Para os de cima, porque estão em cima,
só se for para subirem mais,
a mudança.

Para os de baixo, porque estando embaixo,
não desejam senão estar acima,
a mudança que interessa é
a mudança de lugar – querem subir,
o resto que continue como está.


6.
Concordo com Heráclito,
a realidade arde, é fogo,
não é sempre que dá certo
mexer nas brasas.

Tudo em movimento,
e mesmo que por um instante,
um fogo se mantenha,
não se mantém para lá
desse instante.

Eu concordo, é efêmero,
é uma chama que se ateia
num montículo de palhas,
qualquer vento apaga.

Mas por que não ser
a mão riscando o fósforo?

Vai que essa faísca
faça um fogo, que não dure,
mas que se alastre e incendeie,
desdobrando-se em muitos outros fogos,

Não valerá o risco, esse incêndio,
das prováveis, das quase certas
queimaduras?

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