quinta-feira, 19 de junho de 2014

Só Me Falta Um Mal Pra Ser Feliz






















1.
Meu mal é não haver um grande mal
com que distrair as horas dos dias, que são longos,
e das noites, que não duram mais que um cochilo,
um grande mal, mas suportável, mas não tão grande,
para eu levar no bolso como uma relíquia,

Para andar comigo, por aí, como um bom inimigo
que, cansado de brigar, fez trégua
e agora está do meu lado,
um grande mal pro convívio.

Me faz falta uma dor bonita com quem namorar,
para andar de mãos entrelaçadas pelas praças
e pra apalpar à noite, durante voluptuosas madrugadas,

Para viver falando, a conhecidos e desconhecidos,
dela e de suas feições e de seus requintes,
e dizer, sempre a disfarçar, sempre com modéstia,
dizer, mas dizer por outras palavras,
pelo contrário mesmo, que a amo.

Uma dor bem bonita para fingir que odeio,
escondendo a verdade de a adorar
e o quase intolerável orgulho de a sofrer.

2.
Não tenho um drama essencial, uma dessas
angústias permanentes que embelezam
as feições, os gestos, as falas, como a melancolia
dos poetas ultrarromânticos.

Não. Não tenho.

O que me perturba e anda sempre
a me perturbar são esses dramecos triviais
do todo dia, o que tem derrubado os meus
cabelos e riscado meu rosto antes do tempo
e vem me calando e a me dar vontade de ficar imóvel,
de dormir mais do que posso, são as dores
de qualquer um, do mais da gente.

O susto da conta de energia, cara demais,
a casa própria, que não possuo, mudar
de casa em casa, alguns eventos do trabalho,

Sofro dos inúteis males comuns
dos sofrimentos sem importância,
das dores que não fazem ninguém distinto,
mas que igualam, no mesmo patamar de irrelevância,
aqueles a quem aflige.

Andar de ônibus nunca foi angústia
suficientemente bela para se vangloriar,
comer marmitex no almoço e achar muito caro
nunca foi sentimento que rendesse
alguma homenagem,
uma admiraçãozinha sequer.

3.
Um dia desses, olhava para o meu tênis,
velho, gasto, já quase descolando, eis uma pequena
angústia, não poder ir a uma loja e pegar um
tênis bom, comprar sem remorsos ou
a sensação de que o investido ali, faltará,
mais para o meio do mês.

Me diz se não é pequena a dor de ter um
celular de dez anos atrás e não poder adquirir
outro sem calcular o impacto das 20 prestações
no orçamento mensal.

Meu desespero é o das filas dos bancos
e das lotéricas, as esperas sem fim,
não poder fazer nada.

Um dia desses, faltou água, noutro,
faltou luz, num terceiro, os dois,
e foi como voltar ao passado
sem ter o hábito de suportá-lo,
terrível!

4.
Se pelo menos soubesse viver a mediocridade
consistentemente e não imaginasse futuros
fartos de ventura, mas nem isso!

Passo pelo que passo e porque leio um livro
ou outro, ou vejo um bom filme, porque às vezes,
tenho uma folga, me julgo bem e, enxergando um
sentido para cada esforço investido,
suporto o todo dia, em cada frustração,
pensando é a vida...

Se pelo menos sentisse que não vale a pena
e aderisse de vez à inércia que o mundo
vez ou outra me oferece,

Me sentisse injustiçado pelo Universo,
vítima dos aleatórios feitos do Acaso,
pronto, teria um grande incômodo
com que lidar todos os dias.

5.
Tivesse um drama essencial,
um problema de identidade, um pessimismo profundo
e resignado, um tédio realmente grandioso
diante de todas as coisas, de tudo,
para me distrair dessas pequenezas cotidianas,

Quem dera guardar uma grande dor
como quem guarda o segredo do Universo,
e poder ser arrogante por guardá-la.

Tivesse um bom drama para viver,
aí, sim, eu seria feliz.

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