domingo, 13 de julho de 2014

Será Só Isso?




1.
De tudo o que ela não sabia
se queria ou não, havia algo
sobre o qual estava muito
da sua pouca convicção:

Queria ser o orgulho
do papai e da mamãe.

E porque não concebia
nada de tão importante e
necessário à existência,
de tudo fazia pela vontade
sua de realizar a vontade
alheia, encarnando-a.


2.
Chegava cedo das festas
e só saía sob permissão,
ia na igreja, todo domingo,
estudava mais que devia,
mais que podia, porque medicina
não era para qualquer uma
e valia o sacrifício.

As amigas eram os pais
que escolhiam, os pretendentes
eram avaliados por eles e tudo
mais da sua vida era escolhido,
definido por anseios que não seus,

Exceto a comida, a mesa
era o seu reino, não comia
nem ervilha nem milho, nem cebola,
carne só muito bem passada,
e tinha que estar quente,
comida fria ela não comia,
só comia o que queria,
não comia quase nada.

E estava bem assim, já que tão
poucos anseios tinha, melhor mesmo
era ir satisfazendo aquele quase único
que se confundia e se desdobrava
nos anseios de seus pais.


3.
Pela vida afora, nós, os grandes
confrontadores e inquietos,
aprendemos um princípio
embora muito pressentido,
ainda muito mal sabido e explicado:

O estado que se prolonga
ao tempo que entedia gera
um desejo grande
pelo seu contrário.

Assim, aquele que vive
num contínuo desassossego
sonha com dias como camas
onde possa deitar e relaxar

E aquele que vive o invariável
desses suaves dias tão iguais
uma hora sente uma vontade
irresistível de se levantar.


4.
Com 22 anos de uma vida
tranquila e gestando um futuro
certo, imutável, quem é que não
se pega um dia a se indagar
sobre o mundo, a vida e tudo mais:
se será mesmo isso?
- Só isso?...

Ela se perguntava, olhava pra diante,
quilômetros e mais quilômetros
da mesma estrada já pavimentada,
se era confortante, era ao mesmo
tempo terrível imaginar que sim,
que era só isso… Aquela reprise
sem fim.

Não podia ser, ela não queria.

Pediu as chaves de casa e com
o carro (presente dos 18) ia
para onde o desejo mandava
e com a mesada, comprava
o que o desejo pedia.

Algumas roupas mais justas,
mais escuras, cabelo esquisito,
batom e maquiagem diferentes
das dondocas do convívio,

Mais que isso, chamou
os amigos de bobocas
sem muita elegância.

Largou do noivo
pra namorar um vagabundo
que não tendo nem estudo
nem trabalho, tinha muitos sonhos
e um sorriso lindo.


5.
Só pode tá doida, pensaram
os pais, e pegaram de volta
as chaves, tomaram o carro,
cortaram a mesada,
mandaram cancelar o cartão,
pagaram terapia.

Uma menina tão ordeira,
tão obediente, sempre tão
sensata, o que estava
acontecendo? Ela já tinha
22, não era hora de adolescer!

Era falta de Deus, rogava a mãe,
era falta de peia, se arrependia o pai.

Pois, ela largou a faculdade,
arranjou um emprego
de vendedora (vendedora, meu Deus,
lamentou a mãe), só não saiu
de casa por muita insistência,
muita confusão. Ficou, mas
as coisas seriam diferentes.
E foram.


6.
Se houvesse um modo
de sabermos de antemão
como nos sentiríamos depois
de certas vivências, de quem
seríamos depois de as termos
vivido, tenho quase certeza
de que nem tentaríamos vivê-las.

Não sonho com a realidade
das vidências que existem por aí,
nem falo delas, na verdade,
porque qualquer previsão mística
ou matemática se, ao especular,
tem alguma medida de acerto,
a tem somente sobre acontecimentos.

De modo que quando você
vai conferir o seu futuro no tarot
ou nos búzios ou quando recorre
a técnicas probabilísticas, vai ter em mãos
apenas uma previsão dos eventos
e da forma como eles vão se desdobrar.

Não há ciência ou magia precisa
o suficiente para predizer
a forma como esses eventos
vão afetar você, nem como o
que você pensará deles
depois de os ter experimentado.


7.
Era nisso que ela estava pensando
aquela noite, estava menos animada
e gritando menos que o habitual
por isso,

Pensava,
por isso estava
tão distante.

Soubesse por antecipação
como era a vida fora daquela
vida ordeira, vida de ovelha,
não sabia, e a vivendo só sabia
que não era a vida que queria,
queria outra. Que outra?

Não sabia.


8.
Um cara está beijando seu pescoço
passeando a língua pegajosa pela
sua pele já suada e enquanto isso,
tenta escalar pela coxa desnuda
o interior da saia preta e justa.

São quatro da manhã,
o cheiro de cigarro e bebida
e urina é muito forte, quase
todos vestem preto e estão
bêbados. Um cara berra
como louco no palco
e o resto da “banda” tortura
pobres e inocentes instrumentos.

Ela olha em volta, um tanto bêbada,
um tanto lúcida, quatro da manhã,
quantos anos se passaram?

Ela se dá conta, aquela pergunta
ainda está ali: será só isso?

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