sexta-feira, 1 de maio de 2015

O Caso da Repartição



Quando os dois foram transferidos para o mesmo setor, descobriram rápido que tinham gostos musicais diversos, visões existenciais distantes, posições religiosas dessemelhantes e até nas menores coisas discordavam. Um gostava de café, o outro não. Se no decorrer da interação percebiam mais e mais distinções entre si, motivos para a distância, nesses primeiros momentos, não percebiam nadica de nada em comum, a não ser a promissora antipatia de um pelo outro.

Assim, o cotidiano no trabalho ia se desenrolando sobre o pano de fundo de seus debates e eles iniciavam muitos e por muitos motivos. Sempre havia algo, uma notícia, uma ideia, uma fofoca, um ensejo que fosse para que os dois entrassem num novo desacordo e um tentasse demonstrar ao outro a burrice do que defendia e, em contrapartida, a genialidade e exatidão dos próprios argumentos.

Funcionaram assim, por uns dias, debatendo e debatendo, às vezes, como os ânimos muito exaltados, mas naquele dia, a mágica aconteceu. Um deles comentou sobre a ousadia dos "gays" em quererem se casar na igreja. Pela primeira vez, o outro não levantou uma opinião contrária, na verdade, não só concordou, como complementou o comentário com o seu próprio.

Foi por aí que os dois largaram as diferenças, perdoaram-se mutuamente pelos defeitos e idiotices e se deram as mãos para caminharem juntos. Tem dessas pela vida afora, pessoas que não se aproximam pelo que gostam, mas pelo que odeiam, caso daqueles dois que tinham esse grande ódio em comum: "gays".

Isso começou pela manhã, logo cedo, e ainda à tarde eles ainda estavam concordando e buscando argumentos para fortalecer a ideia de que os "gays" queriam dominar o mundo e alguém tinha que fazer algo a respeito. Foi lindo. Tirando o fato de estarem se entendendo por um motivo tão questionável, os dois realmente se aproximaram e de modo tão íntimo e com tamanha cumplicidade que duvido muito que seja fácil encontrar namorados com a mesma capacidade de entrega e confiança.

No outro dia, um deles estava andando pelos corredores, perguntando a quem encontrasse pelo caminho: você prefere ter um filho traficante ou "gay"? E ele sempre carregava nessa última palavra. Quando alguém escolhia a segunda opção, ele zombava e dizia que o mundo estava mesmo perdido. Isso quando não afirmava que a pessoa era "gay". Para ele era simples, a pessoa que defendia os "gays" tinha que ser "gay" também. Ele não conseguia conceber que uma pessoa não "gay" defendesse um "gay". Não se sabe onde ele aprendeu a pensar assim.

Como trabalhávamos em sala conjugadas, embora em setores diferentes, é claro que esse cara não podia ficar sem fazer a pergunta pra mim. Tanto que fez. Respondi que preferia ter um filho saudável, de bem e feliz. Ele completou: o "gay"! A partir daí, ficou me enchendo o saco todo santo dia, dizendo que eu era "gay" pra todo mundo que visitasse o setor. Já que eu os defendia, tinha que ser. Eu só ria, a gente não deve contrariar os doidos.

De qualquer modo, foi com especial alegria que testemunhei o desatar dos estreitos, apertados e coloridos laços que uniam os dois. Não sei como, não lembro direito, mas o cara da pergunta acabou entregando que gostava de novela. Não era tão simples assim. Ele chegava em casa, fazia uma sobremesa e depois, ia pra frente da tv com sua sobremesa assistir novela. Quando o outro ouviu isso, retorceu a cara de tal maneira que acho que se pegasse a própria mulher num bacanal não retorceria tanto.

Este outro ouviu a frase - bomba atômica para a amizade, retorceu a cara e de imediato, apontou o dedo para o já ex-grande amigo e disse: SEU "GAY"!!! O da pergunta tentou se explicar, disse que novela era algo cultural, nada a ver, não era porque ele gostava de novela que era "gay", todo mundo gosta de novela. Que mal tem gostar de novela?

Mas era tarde demais.




                                      
Gostou? Compartilhe.
Valeu

Nenhum comentário:

Postar um comentário